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Hanseníase: uma doença sistêmica e complexa

A era pré-poliquimioterapia (PQT) de tratamento da hanseníase, até a década de 1980, apresentava uma série de exames complementares que deveriam ser feitos em todos os pacientes antes do início do tratamento, tanto para fins diagnósticos, como para fins de classificação. O programa de hanseníase funcionava de modo vertical, e os pacientes usualmente tinham que ir até uma unidade de referência para o diagnóstico e o tratamento.

Obviamente, estas necessidades, como baciloscopia, histopatologia e teste de Mitsuda, faziam com que os diagnósticos fossem postergados e, muitas vezes, os pacientes não conseguiam nem retornar aos serviços para finalizar todos os exames e iniciar o tratamento, que era longo e deveria ser acompanhado por anos.

Com o advento da PQT na década de 1980, o tratamento passou a ter uma duração fixa de 24 meses (24 doses), inicialmente com a manutenção de todos os exames que havia anteriormente. Na década seguinte, 1990, os países assinaram com a Organização Mundial da Saúde (OMS) o compromisso da eliminação da hanseníase como problema de saúde pública, considerado como a prevalência de menos de 1 caso a cada 10 mil habitantes. A questão era encontrar os casos e tratar, portanto, o diagnóstico deveria ser rápido e o tratamento deveria estar disponível em todos os lugares. Para que isso acontecesse em áreas remotas ou com poucos recursos, houve um processo de supersimplificação da hanseníase, que culminou com o diagnóstico feito apenas pela contagem de lesões e, basicamente, sem nenhum exame complementar.

No ano 2000, mesmo sem testar a hipótese, a OMS declara que a hanseníase está eliminada como problema de saúde pública no mundo. A partir daí, o que se vê é a diminuição gradual e constante no diagnóstico dos novos casos relatados anualmente pelos países à OMS, com os números refletidos nos Weekly Epidemiological Records. Em 2005, a Índia declara a eliminação da hanseníase e apenas o Brasil permanece como o país que não eliminou a hanseníase como problema de saúde pública.

Não obstante, ao mesmo tempo se observa em vários lugares um aumento do percentual de casos diagnosticados com grau 2 de incapacidade física, portanto, com diagnóstico tardio, bem como o aumento de casos registrados em crianças, indicando uma alta circulação de M. leprae nas comunidades. Além disso, ações de busca ativa com especialistas em áreas silenciosas ou de baixa incidência relatam a detecção de muitos casos em curtos espaços de tempo, indicando uma endemia oculta altíssima.

Também a partir do ano 2000, houve uma aceleração na proposta de descentralização do diagnóstico da hanseníase, que ficaria a cargo dos serviços locais e não mais de referências. Apesar da distribuição maciça de PQT em todos os lugares possíveis de atendimento, não houve a descentralização do conhecimento, resultando em PQT disponível e falta de diagnóstico.

Os 22 anos da era pós-eliminação se caracterizam, portanto, pelo silêncio epidemiológico nas áreas onde a hanseníase foi eliminada, mesmo com o diagnóstico de mais de 200 mil casos novos por ano. Uma vez eliminada, serviços são extintos e a doença para de ser ensinada nas faculdades e universidades, resultando em um quadro grave de falta de conhecimento da hanseníase no meio acadêmico, com a consequente falta de diagnóstico, mesmo de quadros clássicos, nos serviços de atendimento à população.

Como consequências da paradoxal – e irreal – quase ausência de casos no mundo, temos, entre outras características, a manutenção do estigma e do preconceito institucional, profissional e da sociedade em geral, que considera a doença como extinta; a falta de linhas de cuidado, fazendo com que os pacientes diagnosticados não tenham acesso ao sistema de saúde; a ausência de novas drogas para o tratamento das pessoas atingidas pela hanseníase, o que a caracteriza como uma doença negligenciada; a tentativa de diminuição do tempo de tratamento dos pacientes com os mesmos antibióticos usados há mais de 40 anos, ignorando a capacidade bacteriana de se proteger para se manter viva; o uso indiscriminado de drogas imunossupressoras para o tratamento de “reações” que nunca cessam; o diagnóstico de outras doenças que podem, em algumas de suas fases, se parecer com a hanseníase; e o dogma da “hanseníase tem cura”, que não pode, diferentemente de outras doenças, ter falha terapêutica ou recidivas.

Por tudo isso, nosso congresso deste ano pós-pandemia, presencial, traz para discussão o tema “Hanseníase: uma doença sistêmica e complexa”. Esperamos que as discussões, para além de lançar luz sobre profissionais e instituições de saúde, se transformem em ações práticas que possam transformar a realidade atual da hanseníase no Brasil e no mundo.